A
história real de Branquinho, um cachorro que ensinou...
O texto é longo, mas vale a
pena.
João é um dos seis empregados de nosso
condomínio. Certo dia quando ele vinha para o trabalho percebeu que um cão
seguia a seu lado. Julgou tratar-se apenas de uma coincidência e, portanto logo
o cão tomaria outro caminho. Fazendo seu trajeto habitual João dobrou a esquina
da Rua Santa Cecília, entrou por ela, virou à direita na Prefeitura e reparou
que a “coincidência” permanecia ao seu lado.
Chegando ao condomínio João abriu o
portão que dá acesso a uma pracinha interna, e nisto, mais rápido que o vento
nordeste que soprava, o tal cão, sem ser convidado, penetrou no ambiente de
nossa comunidade. Já era excesso de coincidência, a coisa estava mais para
intencional.
Seguindo a sua rotina diária, João se
dirigiu ao vestiário dos vigias, trocou de roupa, assinou o ponto e foi se
encontrar com seu colega de turno, o Manuel. O cão, mesmo sem carteira
assinada, sem se apresentar ao síndico, continuou seguindo João e, portanto
cumprindo também seu horário de trabalho.
As 99 casas de nosso condomínio se
espalham por três ruas, no espaço de um quarteirão, e são cobertas pelos seis
vigias em turnos de 8 horas, com dois em cada turno. Naquele dia, no horário
das 15 às 23 horas havia três vigias: João, Manuel e a “coincidência”. A amiga
e vizinha Marly, sempre atenta a tudo que se passa, especialmente na rua do
meio, a privativa, percebeu a cena e perguntou: --“E aí João, temos empregado
novo?” Ato contínuo, sabendo que o cão ainda não tinha um nome, Marly tratou de
batizá-lo: --”Pois daqui pra frente tu te chamarás “Branquinho”“.
O dia estivera lindo e a noite era
premiada com a prata do luar. Um cenário apropriado talvez para a chegada de um
“anjo”, sem asas é verdade, mas com uma cauda e ao invés de cânticos, latidos.
Encerrado o turno de João, o cão seguiu com ele até sua casa. Branquinho já não
era desempregado e nem “sem teto”, conseguira também um lar.
A rotina daquele dia voltara a se repetir
nas semanas seguintes. Branquinho viera para ficar. Todos os moradores passaram
a conhecer aquele simpático vira-lata que daí em diante gozou de uma mordomia
sem limites. Ora alguém lhe oferecia o almoço, ora o jantar, às vezes um lanche
fora de hora e Branquinho já exibia um flagrante excesso de peso. Mantinha
sempre seu ar meio bonachão numa cara bonita e olhar de pidão.
Não negando a raça ele não suportava
ver um gato transitando em sua área e aqui havia vários. Um dia assistimos a
ele perseguir um gatão malhado que, mais ágil e mais leve, saltou um portão
baixo para se refugiar na garagem de uma das casas. Branquinho mostrou não
haver perdido a forma e venceu o obstáculo também. O gato subiu quase voando
uma escadinha em caracol que levava ao segundo piso. Nosso herói, meio
desengonçado, pois era um pouco mais largo que a escada, chegou em segundo
lugar mas alcançou o piso mais alto.
O assustado felino fez peripécias,
galgou o muro e o topo da casa pelo telhado. Após alguns minutos de silêncio surgiu
meio que escorregando pelo telhado, todo atrapalhado, o amigo Branquinho. O
gato praticara salto triplo e já pulara para mais três telhados adiante. Com um
olhar assustado nosso herói, se pudesse falar, estaria gritando por socorro.
João percebera tudo e já se apresentava como um bombeiro improvisado, segurando
uma enorme escada, para retirar nosso desengonçado herói daquela situação
humilhante.
A partir daquela noite, Branquinho
surpreendeu com uma decisão inesperada: ao término do turno de João ele não se
foi, preferiu permanecer no condomínio. Passamos a tê-lo em tempo integral. Ele
dormia ora na minha porta, ora na de Marly, ora na de Celma, porém mesmo tarde
da noite, a qualquer ruído estranho ou vulto que não reconhecesse Branquinho
dava um alarme. Como não tinha apito, que nem os vigias da noite, latia mesmo.
Tínhamos um “anjo-da-guarda” 24 horas por dia, que não nos cobrava férias, nem
horas extras, nem fazia greve.
Em alguns fins-de-semana ele sumia,
tirava “folgas” por conta própria, e no retorno de uma dessas escapadas
percebemos que ele estava todo arranhado no rosto e na barriga. O olhar cansado
também transmitia tristeza e dor. Teria ele se envolvido em briga com gangues
de gatos?
Acabaram por nos chegar informações
posteriormente de que Branquinho era um D. Juan canino, pois fora visto em
altas transas noturnas por outras ruas próximas, em algumas delas,
defrontando-se com ferozes e adestrados cachorros tipo dobermanns, pitbull etc.,
em defesa da cadela amada.
Era uma segunda-feira ensolarada quando
a amiga Marly o chamou e pediu que lhe desse as patas dianteiras. Branquinho,
que também era um “cavalheiro”, aquiesceu e logo começaram suas primeiras aulas
de dança. Ao som de um bonito samba-canção (Marly tem um bom gosto musical) lá
estava o nosso vigia-extra a mostrar mais uma de suas habilidades.
Tínhamos então um cão, um vigia, um
conquistador e um dançarino, que a partir daquele dia, ao ver minha mulher, ou
Celma, ou Marly logo levantava as patinhas dianteiras e as convidava a dançar.
Curioso que ele nunca tomava essa atitude comigo ou qualquer outro morador que
fosse homem. Bolas, não vou chegar ao extremo de dizer, como certo ex-ministro,
que “cachorro também é gente”, claro que não, mas Branquinho às vezes mostrava
uma certa sensibilidade e perspicácia quase racionais.
Dizem que “não há bem que sempre dure…”
infelizmente isto se confirmou o dia em que nosso “anjo-da-guarda” canino
apareceu novamente todo arranhado e com o olho direito bem machucado. Levado a
uma clínica veterinária, duas más notícias foram anunciadas: Branquinho ficara
cego da vista direita e era portador de uma doença, das classificadas como
incurável. Ao seu retorno já não era o mesmo, nossos carinho e desvelo
aumentaram procurando compensar seu sofrimento.
Mas, como “não há duas sem três”,
expressão muito usada por um radialista português, certo dia Branquinho foi
atropelado perto do condomínio. O destino estava sendo muito cruel com um cão
verdadeiramente amigo pra cachorro.
Algum tempo depois, já recuperado deste
último trauma, mas carregando a doença que lhe extraía a vida aos poucos,
Branquinho chegou ao condomínio em companhia de uma linda, simpática e malhada
cadelinha. Antes que a apresentasse aos moradores já Bárbara, uma menina de 13
anos, a batizou de “Filé”, isto porque ela, a menina, nunca dispensava um bom e
suculento bife. Lógica? Claro que nenhuma, mas o nome “pegou” e ficou.
Durante algum tempo os dois passaram a
patrulhar juntos nossas ruas sem que jamais tivéssemos descoberto se eram
apenas bons amigos ou … não importa. O que vem ao caso é que umas três semanas
depois percebemos a ausência de Branquinho. “Poderia ser mais alguma de suas
conhecidas ‘escapadas”, mas não, ele realmente se fora nas caladas de uma noite
sem luar. As semanas passaram e conosco ficara apenas a lembrança do bom amigo,
tanto em nossas mentes quanto na presença física de Filé.
Claro que Branquinho, sentindo
aproximar-se o seu fim, pode ter preferido morrer longe de nossos olhos. Seria
um tremendo absurdo eu aceitar que ele tomara aquela decisão “conscientemente”,
mas, por outro lado, o que é mais absurdo, um cão, com seu instinto, na
“tendência ingênita dos animais” ter-nos dado mais uma lição de racionabilidade
ou tantos seres, ditos racionais, provocarem guerras por interesses políticos,
por motivos religiosos ou por simples anseios de dominação, do exercício de um
poder absoluto, ou mesmo não se sensibilizarem com a indigência de centenas de
milhões de outros seres humanos, hoje já totalizando um sexto da população
mundial, que sobrevivem à míngua do que o resto da humanidade atira ao lixo?
(Branquinho realmente existiu, a
história é verídica, os personagens citados também e Filé ainda permanece em
nossa comunidade)
Crônica de Francisco Simões
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